Queria sentir alguma coisa tão intensa que me virasse do avesso. Mas eu tenho medo.

Bom dia

— Bom dia!
— Porra! Bom dia? Você sabe que merda de dia que foi o meu? Você tem noção de quanto o meu dia foi escroto? Que eu fui demitido? Que um carro passou e me molhou todo? Você sabe, porra? Então enfia essa sua sua educaçãozinha dada pelos teus pais onde o sol não bate. E sabe o que mais? São nove horas da noite. Você é retardada ou o quê?
— Bom dia porque… o “dia” abrange o dia inteiro, porque estamos quase no horário de verão e eu não sei o que é noite, bom dia porque hoje eu falei com você, bom dia porque eu te amo porque você é a pessoa mais fodida do mundo inteirinho. Bom dia você, bom dia vida. Bom dia.
Não se sussurram verdades.

céu pra passear

eu me lembro como era rezar. ajoelhar-se, fechar os olhos, juntar as mãos e fazer uma prece. um pedido. algo que acredita-se merecer. ou grato por tudo que se tem. e que provém desse tal alguém a quem a prece se dirige.

aos sete eu me ajoelhava, com uniforme azul, numa fila de garotas atrás de um banco e pedia... que aquilo acabasse logo. pra ir embora. que não houvesse lição de casa naquele dia. assim eu ficaria somente com meus gibis e com meu pai. fechava os olhos e contava o tempo nos dedos dos pés.

tenho medo de um dia esquecer dessas coisas. tenho medo de esquecer como era olhar para uma esquina quando eu tinha um metro e vinte de altura e de como sim, alguma coisa acontecia no meu coração. numa esquina qualquer. em todas elas.

a cozinha não era branca. o armário, a mesa, a geladeira e o fogão, tudo era azul. minha mãe prendia os cabelos num coque e alguns cachos ficavam soltos. as cortinas, floridas.

depois do almoço meu pai às vezes me tirava pra dançar. o único homem que já me tirou pra dançar. segurava minhas mãos, pedia que eu fechasse os olhos. dizia: agora menina, nós vamos flutuar... e me rodava até meus pés sairem do chão... cantava em francês a canção que tem o meu nome. era o céu onde eu passeava...

em casa

toda vez que se movimenta durante o sono ela desperta. é sempre assim que acontece. a pálpebra esquerda insiste em tremular há pelo menos dois dias.

febre. foi a manutenção na dose do medicamento que te fez queimar por uma madrugada inteira.

- vai passar! quer um chá da flor que acalma e que tem nome de moça? ou seria a moça que tem nome de flor que acalma?

depois do chá te levarei ao médico. não discuta comigo. você precisa de um médico. admiro essa sua auto-cura, seus livros de ervas milagrosas e receitinhas, mas hoje não, por favor. deixe-me guiar. você precisa de uma droga. manipulada e eficaz.

logo o tremor passará. e eu voltarei pra casa. eu sei que não é seguro. mas não acontecerá nada. essa cidade é perigosa mas tomarei cuidado. eu até pediria que a outra me acompanhasse, mas tem o neném.

tudo bem, essa noite ficarei por aqui. amanhã eu vou embora. me empresta um pijama e uma meia. e qualquer coisa que eu possa segurar. podemos dormir na mesma cama? então põe um colchão na sala. com a televisão e alguma sorte eu pego no sono.

o remédio te deixou sonolenta, eu sei... mas conversa um pouco comigo! vamos falar sobre o que faremos no feriado, ou sobre suas aulas! me encho de orgulho de ti, como se fosse eu a tua mãe! me acolha no aconchego do teu abraço ninho, como nos tempo em que eu cabia nele.

apesar da febre e talvez por causa dela, teus olhos trazem um brilho ainda mais esverdeado. amo teus olhos. mesmo quando me olham com reprovação. como agora. é verdade, eu não me emendo! sempre me arrependo de te contar essas coisas, é que às vezes eu me esqueço o quanto você costuma ser conservadora!

mas prometo ser uma boa menina. não me perderei por aí em qualquer aventura. você sabe que eu sempre me viro bem. mesmo quando me viro mal. estudarei como você sempre quis. mas não porque você quis. porque tem que ser.

e dessa vez tentarei ser uma coisa de cada vez.

você mesmo doente sempre ouve os meus planos. não irei pra longe. não por enquanto. a febre já tá baixando. pode ir deitar. está bom assim. se precisar pego outro cobertor, sei onde ficam! boa noite.
Para ler escutando The End - Sybille Baier.

Tomaram café, falaram sobre amenidades, viram um filme com o intuito de rir mas que as fizeram chorar.

— Eu queria te dizer uma coisa.
— Diga.
— Eu sei que você não me ama mais. Por isso eu estou te deixando. Para te dar um tempo. De pensar, de sentir, sei lá. Não dá mais, eu sei que você não sabe como dizer, mas eu vejo. Isso tudo me assusta muito. As pessoas tem um prazo máximo de gostância da minha pessoa e, infelizmente, eu sei que você está no seu limite. Por isso eu te dou esse tempo. E eu ainda te amo. Mais do que eu posso suportar, obviamente. Por isso te deixo. Porque eu sou egoísta. Porque se eu não fosse, grudaria no teu pé e diria mentiras. Como as que eu digo agora. Porque quem não te ama mais sou eu. Adeus.

Ele, INFP

No supermercado, O Encontro. Sempre foram muito diferentes um do outro. Não se sabe como passaram vinte e dois anos e dez dias e oito horas e vinte e quatro segundos juntos. Supermercados são a terra das possibilidades. Onde acontecem os encontros. Os Encontros, na realidade.

— Olha, eu queria dizer que foi uma grande besteira termos terminado nosso casamento daquela maneira, daquele jeito tão precoce, tão impulsivo. Eu te amo e eu tenho certeza que você me ama também e eu sei que esse vinho do Porto que você está comprando, você está comprando para tomar mais tarde pensando em mim. Nessa besteira. Foi a maior burrada de nossas vidas. Vamos voltar, sempre tivemos uma vida perfeita. Aquele divórcio foi impensado, nossa, você me faz tanta falta. Será que você sente o mesmo? Eu sei que sente, eu não posso sentir isso sozinha. Vinte anos não podem ser jogados fora dessa maneira, ainda mais quando existe um sentimento e esse sentimento é recíproco. Não se faça de idiota, eu sei que você sente o mesmo que eu e só reluta em admitir o que é óbvio! Lembra? A ruiva da sua vida? Você disse!

Ele, vendo a ex-mulher mexer a boca, tudo incompreensível. Tira os fones do ouvido e diz:

— Ãnh?

Ela fica estática. Absurdada, como ele pode se fazer de desentendido após tudo, fingir que não ouviu.

Ele torna a colocar os fones de onde não deveriam ter saído. Ela torna a falar.

— Ruiva da sua vida, Arnaldo? Um estorvo! Pode dizer! Mocréia da sua vida, não é? Contratempo da sua vida? Eu… não posso deixar você escapar de mim assim, de novo! Aliás, você nunca comprou vinho do Porto enquanto esteve comigo! Existe outra! Aposto! Você me trocou! Meu Deus, acabo de descobrir que fui traída pelo meu próprio marido. Por vinte anos! Aposto! Só pode ser esse o motivo. Comemorando? Conseguiu o que queria? O divórcio? Sempre quis se livrar de mim, não foi? Seu escroto!

Ele tira os fones de novo.

— Ãnh? Quê? Desculpe, eu não estava escutando.